Especial: Produção de cacau consolida chocolate como nova vertente da economia na Transamazônica

Após décadas de um cenário marcado pelo gado e exploração de madeira, com forte impacto socioambiental, produção de cacau em Sistema de Agroflorestas cresce na região e traz novas perspectivas.

Por Rafael Sobral, com imagens de Márcio Nagano. Esta reportagem foi produzida em parceria institucional entre a Amazônia Vox e a Sicredi.

Créditos: Assessoria

Sete dias depois de partir de Blumenau, em Santa Catarina, o caminhão em que Sara e Robson Brogni viajavam pelo país precisou fazer uma parada de emergência na cidade de Goiânia (GO). O veículo, dirigido pelo pai de Robson, não tinha qualquer pane e o motivo da parada era mais que especial: Sara havia completado o nono mês de gravidez e seu primeiro filho estava para nascer, ali mesmo, na cidade goiana. O casal seguiu viagem e os anos na nova vida no interior do Pará, às margens da rodovia Transamazônica, a BR-230, são contados pela idade do filho, Julio Cesar Faes Brogni.

Dezessete anos depois, a nova fase na vida da família também contribuiu, ainda que numa pequena escala, com uma nova realidade que o município de Medicilândia, no Oeste do Pará, vem construindo nas úlmas décadas. Hoje, a cidade é considerada como a “capital brasileira do cacau”, com uma produção anual estimada em 48 mil toneladas, segundo dados do Projeto Previsão de Safra de Cacau no Estado do Pará para o ano de 2024 (SEDAP/CEPLAC). O volume corresponde a 16,7% de toda a produção nacional.

Atualmente, o Pará é o maior produtor do país, com cerca de 153 mil toneladas (IBGE 2024) e detém 53,4% da produção nacional, superando há alguns anos a Bahia, que liderava o ranking.

Robson Brogni é um dos produtores que contribuem com essa safra crescente na região. Mais do que componente da economia local, o cacau tem ajudado a mudar, novamente, a paisagem às margens da rodovia. Antes da década de 1970, a região era de floresta amazônica nativa. No período militar, com a política dos grandes projetos e a própria Transamazônica, a vegetação densa deu lugar para as derrubadas para a estrada, a retirada de madeira e abertura de pastos, com uma série de impactos socioambientais, inclusive para os povos indígenas que já ocupavam esse território.

E o Sítio Ascurra, da família de Robson Brogni, é uma dessas propriedades que estão transformando a paisagem e o modo de pensar na região. Os produtores entendem que cacau bom é aquele plantado combinado com outras espécies, principalmente porque o cacaueiro é uma árvore que cresce e produz melhor na sombra, em condições de sub-bosques. É dessa forma que os sistemas agroflorestais estão dando um outro contorno para uma região que foi marcada pela exploração de madeira e pelas pastagens, em outros tempos, e agora passa por um plantio que traz benefício ambiental, econômico e social.

“Hoje, o plantio ocorre em um SAF (Sistema Agroflorestal), onde tenho diversas outras árvores navas da Amazônia, como ipê, castanha, tatajuba, cedro e até pé de mogno tem aqui”, comenta o agricultor Robson Brogni.

Na propriedade gerenciada por Robson e Sara são mais de 50 mil pés de cacau plantados, com uma produção anual que chega a 70 toneladas de amêndoas. A maioria é vendida para a grande indústria, é o chamado cacau bulk, de qualidade padrão e que é utilizado na maior parte do mercado.

Uma parte dessa produção, entre 10 e 15 toneladas, é de uma qualidade superior e direcionada para a fabricação de chocolate fino. Para ser considerada uma amêndoa desse tipo, é preciso que elas alcancem um nível de fermentação de 70% ou mais quanto mais próximo do 100% de fermentação, melhor a amêndoa.

Chocolate amazônico premiado – Ano após ano, o cacau e chocolate produzidos pela Ascurra, em Medicilândia, vem conquistando o mundo. Em 2019, venceu o primeiro lugar de amêndoa de cacau no Pará, no Festival Internacional de Chocolate e Cacau. No ano seguinte, conquistou o primeiro lugar nacional no Brazilian Cacao Awards, categoria blend de cacau e em 2023 ficou com o segundo lugar mundial no Cacao of Excellence Award.

Para Robson, as premiações são resultados de um trabalho conjunto e todo o cuidado no preparo, do plantio às barras de chocolate.

O próprio processo de verificação do nível de fermentação é manual e cuidadoso, como, aliás, as demais etapas da cadeia do cacau. Funciona assim: em uma tábua com 100 “buraquinhos” são colocadas 100 sementes e analisadas. Elas precisam atingir um padrão de cor e formação específicas. Caso 60 das 100 amêndoas estejam dentro desse padrão, aquele lote tem 60% de fermentação; se 70 atingirem, são 70% de fermentação e assim por diante. “Para ser uma amêndoa destinada ao chocolate fino, é preciso alcançar um padrão perfeito entre o sensorial e o visual”, explica Robson.

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O interesse pelo mercado de chocolates finos veio, justamente, do cuidado e qualidade com as amêndoas. “Comecei a me dedicar mais, a estudar e produzir amêndoas cada vez com mais qualidade, com altas taxas de fermentação, mas por falta de mercado, acabava vendendo para a grande indústria, que misturava tudo”, relembra.

Foi dessa inquietação que veio depois a fabricação própria de chocolate da família. Tudo começou em um quartinho de visitas e com uma máquina que produzia pouco mais de 35 kg de chocolate por mês. Hoje, a indústria de chocolate do casal, liderada por Sara, chega a produzir mais de 300 kg de chocolate ao mês, com mais de 200 produtos diferentes, que vão do chocolate com jambu até cerveja feita com o próprio cacau.

“E já estamos pensando em ampliar essa produção, basta termos uma demanda que consiga suprir. Recentemente, adquirimos duas novas estufas, que vai nos ajudar a melhorar ainda mais essa produção”, comenta o produtor.

Créditos: Assessoria

As duas estufas são utilizadas na etapa de secagem das amêndoas e foram financiadas pelo Sicredi, uma cooperativa de crédito, onde os associados são donos e participam ativamente das decisões e resultados financeiros. A instituição vem apoiando diversos projetos e iniciativas na região, principalmente voltados para pequenos produtores e agricultores familiares.

Para o gerente do Sicredi em Medicilândia, Ildinho Lopes, apoiar essas iniciativas permite o fortalecimento de todo um ecossistema regional. “A nossa missão é facilitar a vida das pessoas, é fazer com que se desenvolvam cada dia mais, pois elas se desenvolvendo, elas fortalecem a própria cooperativa, seus associados, geram mais empregos e contribuem para o desenvolvimento de toda a região”, complementa.

No Pará, o Sicredi opera por meio de cinco cooperativas: Sicredi Norte, Sicredi Sudoeste MT/PA, Sicredi Grandes Rios MT/PA/AM, Sicredi Integração MT/AP/PA e Sicredi Araxingu MT/PA. Atualmente, a instituição conta com 99 agências distribuídas em 76 municípios paraenses. São mais de 336,5 mil associados no Pará atendidos por um time de 952 colaboradores em todo o estado.

Outro desses milhares de associados é Dari José Ritier, nascido na cidade de Tenente Portela (RS) e criado no Paraná, que se mudou com a família para Medicilândia em 1989, em busca de melhores oportunidades. “Naquela época, pouca gente se interessava pelo cacau, até porque o preço não ajudava. Hoje, nós sabemos que Medicilândia é o foco no mundo da cacauicultura”, diz ele, que já passa dos seis mil pés de cacau plantados.

Dari José Ritier | Créditos: Assessoria

Atualmente, em seu pequeno sítio, com cerca de 37 hectares, seu Dari leva uma vida tranquila, dividindo-se entre a plantação de cacau, que ocupa mais espaço, mas combina com outras espécies, e a de açaí, um pomar, além da criação de porcos e galinhas. O dia a dia é de trabalho na terra.

“Costumo dizer que o Sicredi foi um parceiro mesmo, e quem me ajudou a mudar a minha vida financeira e da minha família. Nesses anos que já estou associado, já financiei roça de cacau, custeio, reforma de casa e até mesmo a compra de um carro. O que mais admiro é essa preocupação em orientar e estar junto da gente. Isso faz com que possamos ficar mais tranquilos em relação a tudo”, garante o produtor.

“Aqui até tinha cacau, mas era de qualidade ruim, sem cuidado, com muita juquira (plantas invasoras que prejudicam a produção). Fiz todo o trabalho e hoje já produz de melhor qualidade. Quando olho assim, parece que é toda uma vida trabalhando com cacau, porque envolve a gente, muda a maneira da gente trabalhar e ver a própria terra”, afirma seu Dari.

De acordo com o coordenador do Programa de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva da Cacauicultura no Pará (Procacau), Ivaldo Santana, a perspectiva é que o Estado consolide ainda mais a produção nos próximos anos, por iniciativas como a de Robson e de seu Dari.

“Hoje, nossa taxa de crescimento é de 6% ao ano e a ideia é ampliar. Para isso, precisamos investir em assistência técnica e extensão rural em quantidade e qualidade, em indústrias que possam processar esse cacau localmente, além de crédito rural oportuno e com baixa burocracia. Precisamos entender que a cacauicultura é uma das poucas lavouras permanentes, que reúne todos os atributos da sustentabilidade: econômico, social e ambiental”, garante Santana.

Presente dos deuses para transformar a paisagem
De acordo com estudos recentes, a palavra “cacau” teria origem na língua falada pelos Astecas, povo mesoamericano que ocupava o território do atual México central e que se referia ao fruto pelo termo “cacahuatl”. Já o cacaueiro foi batizado cientificamente em 1737, pelo botânico sueco Carlos Lineu, como Theobroma, cujo significado é “alimento dos deuses”, em referência à relação que os astecas mantinham com o cacaueiro, considerado uma árvore sagrada e com o cacau, tido como um presente dos deuses e utilizado como bebida em rituais e até mesmo como moeda.

Um estudo publicado na revista Nature, em 2018, aponta que o cacau já era cultivado há cerca de 5.300 anos, antes mesmo do que as evidências apontam na América Central e na América do Norte.

Na região da Transamazônica, o cacau já era comercializado desde o final da década de 1970. No entanto, foi no período entre o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, que os plantios do fruto começaram a transformar a paisagem local de forma mais perceptível.

A região teve forte influência por conta da BR-230, que começou a ser construída durante o governo militar na década de 1970 e é um dos símbolos físicos do mote “integrar para não entregar”, usado no período. Uma política pública para a região questionada pelos impactos em comunidades e povos tradicionais que já estavam no território antes da estrada rasgar a floresta. O nome do município de Medicilândia, inclusive, é uma homenagem ao general Emílio Garrastazu Médici, que governou o Brasil entre 1969 e 1974, período em que a obra foi lançada.

A paisagem ao longo da estrada ajuda a contar a história recente da região nas últimas décadas. Com a perspectiva oficial do Estado de enxergar a floresta como um “vazio” de gente, apesar da biodiversidade e dos povos da região, a diretriz foi clara ao idenficar ali uma “terra sem homens para homens sem terra”. A legislação à época, inclusive, determinava que só teria direito a manter o pedaço de chão aqueles ocupantes que abrissem a mata para ocupar e produzir.

Foi assim que o cenário e a dinâmica econômica na região foram moldados, seguindo a determinação do Estado quando o tema ambiental não ocupava o espaço central que hoje possui, reforçado ainda mais recentemente com a crise climática. Na região é comum encontrar moradores com origem de outras regiões do país, que viram naquela política uma oportunidade de trabalho e de vida.

Os ciclos locais passaram da exploração da madeira para a posterior cultura da criação de gado. No entanto, nos últimos anos, o cacau tem sido um dos responsáveis por mudar novamente a paisagem. Não mais com mata fechada, porém, sem a imensidão de pasto a perder de vista. Aos poucos e com maior frequência, a margem da rodovia vai dando espaço para áreas plantadas de cacau, muitas vezes combinadas com espécies navas em projetos de Sistemas Agroflorestal (SAF), dando um outro contorno para a economia e a relação com a importância da vegetação na região.

Em 2012, no estudo publicado sobre a produção de cacau em Medicilândia, a autora da pesquisa, Andréa de Melo Valente, descreveu que “a utilização de SAFs no cultivo do cacau vem contribuindo para a estabilização da paisagem nas áreas de colonização iniciais, com boa parte das antigas pastagens e áreas de cultivo anual se transformando em florestas secundárias, situação oposta a outros municípios da região onde há o predomínio da pecuária”, afirmou.